Gosto tanto de futebol que chego a gostar mais de futebol do que do Benfica, o que, tendo em conta os últimos 20-30 anos, só pode ser saudável. Não renego a necessária irracionalidade com que o clubismo deva ser vivido, mas, como em muitas outras coisas na minha vida, procuro não ceder à estupidez, especialmente se estiver em público, porque acredito que há coisas que só devemos fazer ou dizer no recato do nosso lar. É por isso que, encerrado na sala com a Sporttv, deixo escapar palavreado impróprio, especialmente nas muitas ocasiões que o meu clube me tem proporcionado para me revoltar ou para me entristecer.
Devo esta atitude quase correcta ao meu pai, que, nos inúmeros jogos a que assistimos, nunca se exaltou a não ser com a qualidade do futebol, nunca lhe tendo ouvido um insulto a nenhum dos intervenientes no espectáculo. Também por isso, nos estádios, sou de uma discrição a toda a prova, até porque, ainda por cima, a irracionalidade agressiva que aí campeia é algo que me desagrada visceralmente e, por prudência cobarde, parto sempre do princípio de que não vale a pena arriscar o palminho de cara que Deus me deu, que não é nada de especial, mas não é para estragar.
Ao longo destes anos como espectador e ocasional candidato a atleta, tenho-me deliciado com comportamentos e linguagens que, podendo ser perigosos, não deixam de ser cómicos. Nos últimos anos, aliás, partilhei essa paixão com um amigo, entretanto falecido, o jornalista Manuel Dias, que juntava à paixão pelo Futebol Clube do Porto uma imensa cultura nascida de uma vida profissional intensíssima, com destaque para os anos que passou n’ O Primeiro de Janeiro (e muito a propósito, no dia de hoje, amigo de José Maria Pedroto). Um dos nossos passatempos preferidos consistia em assistir às transmissões televisivas, comentando não só o jogo, mas também – e muito – o linguajar futebolês, cultivado por comentadores, treinadores, dirigentes e até espectadores.
Um dos muitos projectos que tínhamos em comum consistia, aliás, na publicação de um dicionário de futebolês, o dialecto mais falado em Portugal continental e ilhas adjacentes, não só no mundo do futebol, mas em qualquer dos mundos que o futebol absorve. A propósito, lembro-me de, há uns anos, Fernando Nogueira, comentando a escolha de ministros, afirmar qualquer coisa como “esta não é uma equipa de craques, mas de gente trabalhadora”, reveladora de um conhecimento profundo do futebolês e de um desconhecimento absoluto da elegância.
Não é sem consequências que se usa uma língua e o futebolês, mais do que um dialecto socialmente transversal, é uma atitude, uma filosofia de vida. Em bom rigor, a análise do futebolês é também uma análise da futebolândia, o país real que esconde essa nação fictícia a que chamamos Portugal. Antes de mais, o futebolês é uma colecção de dogmas, confundindo-se facilmente com uma ladainha religiosa. A sua verdadeira origem está nos comentadores televisivos, com destaque para Gabriel Alves, figura absolutamente seminal desta linguagem que dispensa a racionalidade ou a capacidade analítica e chega mesmo a desobrigar o utente de conhecer verdadeiramente o próprio desporto.
É com imenso prazer que aproveitarei, então, este espaço das Sextas para reflectir sobre essa estranha linguagem e mergulhar, qual Richard Attenborough, na selva futebolesa. Será, também – e sobretudo –, uma ocasião para homenagear o Manel. Podem começa a folhear este Dicionário hoje às 22h.
Ligações in memoriam – Manuel Dias
Brinde maravilhoso: uma crónica do Manel no site “Ciência Hoje”
Pois meu caro, joguei futebol desde os infantis até aos nacionais e posso garantir que há mesmo uma linguagem própria. Um dia, em Santa Maria da Feira, o Juca, nosso defesa direito, não tocava na bola, o jogador do Feirense fazia dele o que queria. E, nós, Juca, dá-lhe que o gajo está a gozar contigo. O Juca era trolha, tinha uma barriga proeminente. Às tantas, o avançado aleijou-se sozinho. E o Juca, ufano: “Dei-lhe nos machinhos” que é uma parte do corpo humano que não existe!
Oh Luís e eu a pensar que eras daqueles que gostavam de futebol por terem sido sempre jogadores de bancada
Maria, o meu primeiro vencimento foi a jogar futebol…
paixões que ficam para sempre
o meu primeiro vencimento a sério foi como “vidreira”…